segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

CANDANGOS E PIONEIROS

Como todos os Candangos eu vim fazer parte dessa terra que é o Distrito Federal. Para os que não sabem a que estou me referindo és uma explicação:

Candangos e Pioneiros: por Roque de Barros Laraia.

Os habitantes de Brasília são oriundos de todos os lugares, compoem um complexo mosáico de fenótipos e utilizam-se de muitas maneiras de falar. Pode-se dizer que o ecletismo é a primeira caracteristica dessa gente.

Durante os seus anos iniciais, Brasília foi habitada por uma população totalmente alienígena, provenientes das mais diferentes partes do país. Em seus primeiros anos, desprovida de uma população adulta autóctone, a cidade tinha a vantagem de não possuir donos. Não existia nenhuma espécie de "quatrocentões". Enquanto isso, as creches e as escolas iam sendo cada vez mais povoadas pelos primeiros nativos, a verdadeira população brasiliense, cuja primogênita tinha recebido o mesmo nome da cidade: Brasília.

Não bastasse a diversidade gerada pela presença de migrantes de todas as regiões, a partir de 1971, a cidade passou a ser habitada pelos representantes de dezenas de nações que em Brasília tem as suas embaixadas. Assim, em alguns momentos especiais, a diversidade torna-se mais rica com a mistura das casacas européias, coloridos cafetãs africanos, impenetráveis chadôs islamicos, vistosos saris indianos, ricos quimonos japoneses, etc., transformando Brasilia em um "pout pourri" da moda mundial.

Não se sabe bem por que o palavra candango foi utilizado para designar aqueles que trabalharam na construção da cidade. No passado, este termo era utilizado pelos africanos para designar os portugueses. Entretanto a grande massa de construtores da nova capital era constituida tanto por descendentes de africanos, como de portugueses, além dos descendentes de muitas outras nacionalidades. Ser candango passou a ser sinônimo de pioneiro. Mas a tendência estratificadora de nossa sociedade levou, a partir de um dado momento, a elite que participou da empreitada histórica a abjurar essa denominação e a preferir o rótulo de pioneiro. Com isto, os membros dessa elite passaram a se auto representar como desbravadores, os que abrem o caminhos, mas que não devem ser confudidos com a massa humilde dos que trabalharam a madeira, o cimento e o ferro. É por isto que hoje existe uma diferença radical entre a Casa dos Candangos e o Clube dos Pioneiros. Enquanto este último serve para a realização de reuniões sociais, nas quais são rememoradas a participação de seus membros na época histórica de Brasília, o primeiro funciona como uma entidade filantrópica, na qual as esposas dos pioneiros tem a oportunidade de aprimorar suas virtudes cuidando dos filhos dos candangos pobres.


Para muitos pioneiros, no entanto, a verdadeira dicotomia é a que existe entre pioneiros e os "piotários" (evidente contração de pioneiros com otários). Afinal eles conseguiram reservar para si as chácaras, as mansões, as superquadras, deixando para os outros os núcleos, os acampamentos e as invasões. A utopia urbana sonhada pelos idealizadores da nova cidade esvaiu-se rapidamente cedendo lugar à realidade social do país. Os candangos que tiveram acessos a espaços mais nobres foram, pouco a pouco, "colocados em seus devidos lugares".


Hoje os dois termos começam a serem usados como sinônimos. Pioneiros e candangos passam a significar os que chegaram primeiros. Os trabalhadores da atualidade são denominados "peões", palavra esta a que se atribui uma forte carga negativa.


Pioneiros e candangos são aqueles que agora reivindicam o privilégio de serem os verdadeiros donos da terra. No processo eleitoral de 1988, quando Brasília exerceu pela primeira vez o direito de eleger os seus governantes, muitos candidatos alardeavam esses títulos, procurando menosprezar os adventícios. Em suas mensagens reivindicavam a prioridade dos votos dos eleitores.


Para melhor caracterizar os habitantes de Brasília é preciso recordar que os primeiros imigrantes atenderam o apelo épico de Juscelino Kubistchek, ao mesmo tempo que sonhavam - como todos os migrantes - com o enriquecimento fácil, com a possibilidade de ocupar espaços sociais mais elevados. Depois, e talvez ainda, começaram a chegar aqueles que foram movidos por motivos misticos. Alguns em busca da capital do terceiro milênio (os monistas); outros seguindo as pegadas das sandálias de Yukanan, procurando em uma cidade eclética a salvação diante de uma inevitável catástrofe universal; alguns começaram a ver na nova cidade o ponto de contato entre humanos e seres extra-terrestres e, em noites sem conta, permaneciam em vígilia nas colinas frias que cercam a cidade; muitos outros procuraram a esperança representada por uma sacerdotiza que apontava para um novo amanhecer; vieram também muitos seguidores de seitas orientais e também aqueles que, nos terreiros, falam com deuses afro-brasileiros ao som dos atabaques.


Não resta dúvida que todo esse misticismo foi amplamente alimentado pela insistência de Kubistchek em afirmar ser Brasília a concretização do sonho de Dom Bosco. Segundo a tradição salesiana, o santo piemontês teria sonhado com o surgimento de uma grande e predestinada cidade, à beira de um lago, no hemisfério sul.


Enfim, podemos dizer que a cidade, erguida no Planalto Central, acolheu uma legião de místicos orientados por inúmeras crenças. O misticismo parece ser, então, uma das mais importantes características dos brasilienses.


Podemos classificar os habitantes de Brasília em dois tipos de adventícios. Em primeiro lugar, os já referidos que vieram para Brasília em função de sua própria vontade. Incluimos neste grupo, mesmo aqueles que foram expulsos de suas regiões nativas, porque poderiam ter sido expelidos para outras cidades - São Paulo, por exemplo - mas preferiram Brasília. O segundo grupo é constituido pelos migrantes compulsórios, transferidos "ex ofício" por decretos ou portarias, em função de cargos que ocupavam na burocracia federal, civil ou militar. São os que sofrem a síndrome do exílio. Por muito tempo, vivem em Brasília, de costas para ela, pensando nas praias perdidas, e remoem em tristes reuniões as suas lamúrias. Perplexos, culpam os espaços abundantes pelos seus desajustamentos. As quadras amplas e verdes não tem, para eles, os atrativos das vielas, onde se defrontam as janelas, das cinzentas metropoles. Falam de prazeres perdidos, muitos dos quais nunca foram antes gozados. E projetam na cidade nova as sombras de suas solidões. E um dia, enfim, poem termo a essa moderna diáspora e retornam para os seus lugares de origem. E, mais uma vez perplexos, descobrem que os filhos, nascidos ou crescidos em Brasília, sentem a separação e não se acostumam com as ruas estreitas, barulhentas e esfumaçadas das grande cidades.


Foram, talvez, os portadores da sindrome do exílio que construiram os mitos que denigrem a nova capital. Entre eles, destacamos os que afirmam ser Brasília a detentora de recordes nacionais de suicídios e divórcios. Os dados estatísticos, contudo, refutam, essas afirmações. Em casos concretos, existem evidências que muitas pessoas buscaram Brasília como uma panacéia para os seus problemas existenciais. Os que não conseguiram alcansar este objetivo tornaram-se um número a mais nas estatísticas. É óbvio que os detratores da cidade fazem questão de esquecer os inumeráveis casais que nela se encontraram e todos os indivíduos que em Brasília descobriram uma nova forma de viver.


Ecléticos, místicos e dotados de uma nova percepção espacial, foram algumas das características que atribuimos aos habitantes de Brasília. Sabemos, também, que a Novacap não tem um poder desajustador diferente das demais cidades. Mas há uma outra característica importante: o alto grau de sociabilidade de seus moradores. As pessoas se reunem em clubes, bares e restaurantes; estão sempre sendo convidadas para jantares, jogos ou simples reuniões. As explicações para estas necessidade de participação em eventos sociais nos remetem, em primeiro lugar, para um fato histórico. Os pioneiros e os candangos defrontaram-se efetivamente com o drama da solidão. As luzes dos pequenos acampamentos pareciam perdidos na imensidão das noites do cerrado. Por isto, as pessoas começaram a procurar oportunidades de se reunirem e o fizeram com tal empenho que criaram uma tradição de encontros sociais que perdura até hoje. A segunda explicação é a escassez de parentes. Na maioria dos casos, foram indivíduos isolados ou famílias elementares que se deslocaram para Brasília. Sem o apoio de suas redes de parentescos os migrantes tiveram que recorrer a novos vínculos sociais. É significativo o fato das crianças chamarem de "tios" os amigos dos pais.


Lamentavelmente, os visitantes de Brasília não tem essa impressão. Confinados que são no gueto denominado "Setor hoteleiro", onde só convivem com outros forasteiros, não tem a oportunidade de conhecer a vida da cidade.

Por que são oriundos de diferentes regiões, os habitantes não deixam de tentar transplantar os costumes e rituais de suas origens. Esta preocupação transforma a cidade em uma espécie de síntese do país. As tradições populares de todos os recantos são revitalizadas em Brasília, sendo transformadas por um inevitável sincretismo. Tal síntese não deixa de corresponder a utopia de Juscelino Kubistchek de construir uma capital capaz de ser um forte fator de integração nacional.


Finalmente, é preciso considerar que a primeira geração de nativos já se tornou adulta. Portanto, torna-se necessária uma pesquisa para uma melhor compreensão do modo de viver e da percepção dos primeiros rebentos da cidade. Estes são muito diferentes da geração que os gerou. Cresceram em um contexto urbano expecial, foram de certa forma as cobaias de uma experiência fascinante. Muitos relatos registram o espanto em relação as outras cidade, a preocupação com a poluição das mesmas, o sufoco diante das grandes multidões, e a pouca experiência diante da violência dos outros centros urbanos.

Fonte: http://vsites.unb.br/ics/dan/Serie203empdf.pdf

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